sábado, 23 de junho de 2007

Uma fábula sobre a fábula

(conto árabe)

Encontrei esta história num livro do Malba Tahan, chamado Minha vida querida. Para quem não sabe. Malba Tahan (1895-1974) é um dos nossos maiores contadores de histórias. Ele escreveu mais de cem livros so­bre assuntos diversos. muitos de lendas e contos orientais. Sua própria vida até hoje está envolvida pelo mistério que povoa as narrativas tradicionais.. Para começar. seu nome verdadeiro era Júlio César de Mello e Souza,, e ele era brasileiro. Malba Tahan foi um personagem árabe inventado por ele, com local de nascimento, história pessoal e tudo. É esse personagem que as­sina quase todos os seus livros, e muita gente ainda pensa que ele existiu de verdade. Seu livro mais conhecido e traduzido em muitos outros países é O homem que calculava, fantástica contribuição à educação brasileira, em­bora tantos professores ainda não tenham percebido sua verdadeira importância. Mello e Souza era professor de matemática, e nesse livro fala dos principais conhecimentos matemáticos por meio de histórias fabulosa. Já
na década de 1930 ele conseguiu unir arte e ciência num livro para estu­dantes, coisa que ainda hoje em dia é muito difícil de se fazer.
Esse fascínio que o professor Mello e Souza tinha pelos árabes e pela cultura oriental está impregnado nos seus textos, e às vezes não sabemos quais histórias ele inventou e quais apenas reescreveu a partir de suas pes­quisas. A que apresento neste livro ele leu em algum luga, já que abaixo do título está escrito "lenda oriental", entre parênteses. Aliás, conheço uma versão judaica muito parecida. Desde que descobri esse conto, toda vez que narro alguém me pede uma cópia, e assim ele foi distribuído para muita gente, até fora do Brasil. Um professor espanhol o tem narrado na abertura de suas conferências em várias partes do mundo. Uma atriz do Rio de Janeiro, que também me ouviu contá-Io, resolveu incluí-Io em seu show de histórias. Em São Paulo, conheço uma contadora de histórias que sempre inicia suas narrações de um modo que ela inventou a partir do começo desse conto. Ela diz assim:
“Allah Hu Akbar! Allah Hu Akbar!
Essa história vai começar!”
Por falar nisso, essa invoacação que introduz a história não está escrita de maneira correta no livro do professor, embora Malba Tahan mostre conhecimento da língua árabe nas inúmeras citações que aparecem em toda sua obra. A grafia certa de “Allahur Akbar!” (que ele traduz como “ Deus é grande!”) é “Allah Hu Akbar!”(e a tradução é “Deus é o maior!”). Mas isso não tem a menor importância diante da beleza da história, que vou começar do mesmo modo como ela está em Malba Tahan.

Uma fábula sobre a fábula
Allah Hu Akbar! Allah Hu Akbar!

Deus criou a mulher e junto com ela criou a fantasia. Foi assim que uma vez a Verdade desejou conhecer um palácio por dentro e es­colheu o mais suntuoso de todos, onde vivia o grande sultão Haroun Al-Raschid. Vestiu seu corpo apenas com um véu transparente e pou­co depois chegou à porta do magnífico palácio. Assim que o guarda apa­receu e viu aquela bela mulher sem nenhuma roupa, ficou desconcer­tado e perguntou quem ela era. E a Verdade respondeu com firmeza:
- Eu sou a Verdade e desejo encontrar-me com seu senhor, o sul­tão Haroun Al-Raschid.
O guarda entrou e foi falar com o grão-vizir. Inclinando-se diante dele, disse:
- Senhor, lá fora está uma mulher pedindo para falar com nosso sultão, mas ela só traz um véu completamente transparente cobrindo seu corpo.
- Quem é essa mulher? - perguntou o grão-vizir com viva curiosi­
dade.
- Ela disse que se chama Verdade, senhor - respondeu o guarda. O grão-vizir arregalou os olhos e quase gaguejou:
- O quê? A Verdade em nosso palácio? De jeito nenhum, isso eu não posso permitir. Imagine o que ia ser de mim e de todos aqui se a Verdade aparecesse diante de nós? Estaríamos todos perdidos, sem ex­ceção. Pode mandar essa mulher embora, imediatamente.
O guarda voltou e transmitiu à Verdade a resposta do seu superior. A Verdade teve que ir embora, muito triste.
Acontece que...
Deus criou a mulher e junto com ela criou a teimosia. A Verdade não se deu por vencida e foi procurar roupas para vestir. Cobriu-se dos pés à cabeça com peles grosseiras, deixando apenas o rosto de fora e foi direto, é claro, para o palácio do sultão Haroun Al-Raschid.
Quando o chefe da guarda abriu a porta e encontrou aquela mu­lher tão horrivelmente vestida, perguntou seu nome e o que ela queria.
Com voz severa ela respondeu:
- Sou a Acusação e exijo uma audiência com o grande senhor des­te palácio.
Lá se foi o guarda falar com o grão-vizir e, ajoelhando-se diante de­le, disse:
- Senhor, uma estranha mulher envolvida em vestes malcheiro­sas deseja falar com nosso sultão.
- Como é que ela se chama? - perguntou o grão-vizir.
- O nome dela é Acusação, Excelência.
O grão-vizir começou a tremer, morto de medo:
- Nem pensar. Já imaginou o que seria de mim, de todos aqui, se a Acusação entrasse nesse palácio? Estaríamos todos perdidos, sem exceção. Mande essa mulher embora imediatamente.
Outra vez a Verdade virou as costas e se foi tristemente pelo cami­nho. Ainda dessa vez ela não se deu por vencida.
E isso porque...
Deus criou a mulher e junto com ela criou o capricho.
A Verdade buscou pelo mundo as vestes mais lindas que pôde en­contrar: veludos e brocados, bordados com fios de todas as cores do arco-íris. Enfeitou-se com magníficos colares de pedras preciosas, anéis, brincos e pulseiras do mais fino ouro e perfumou-se com essência de rosas. Cobriu o rosto com um véu bordado de fios de seda dourados e prateados e voltou, é claro, ao palácio do sultão Haroun Al-Raschid.
Quando o chefe da guarda viu aquela mulher deslumbrante como a Lua, perguntou quem ela era.
E ela respondeu, com voz doce e melodiosa:
- Eu sou a Fábula e gostaria muito de encontrar-me, se possível, com o sultão deste palácio.
O chefe da guarda foi correndo falar com o grão-vizir, até esque­ceu de ajoelhar-se diante dele e foi logo dizendo:
- Senhor, está lá fora uma mulher tão linda, mas tão linda, que mais parece uma rainha. Ela deseja falar com nosso sultão.
Os olhos do grão-vizir brilharam:
- Como é que ela se chama?
- Se entendi bem, senhor, o nome dela é Fábula.
- O quê? - disse o grão-vizir, completamente encantado. – A Fábula quer entrar em nosso palácio? Mas que grande notícia! Para que ela seja recebida como merece, ordeno que cem escravas a espe­rem com presentes magníficos, flores perfumadas, danças e músicas festivas.
As portas do grande palácio de Bagdá se abriram graciosamente, e por elas finalmente a bela andarilha foi convidada a passar.
Foi desse modo que a Verdade, vestida de Fábula, conseguiu conhe­cer um grande palácio e encontrar-se com Haroun Al-Raschid, o mais fabuloso sultão de todos os tempos.


MACHADO, Regina (compilado por). O violino cigano e outros contos de mulheres sábias. São Paulo: Companhia das letras, 2004


domingo, 17 de junho de 2007

No mundo há muitas armadilhas

No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha
Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Tróia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)
No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
que a vida é louca? Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
que não sabe
que afoito se entranha à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga
A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade.
Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e agüentarás até o fim.
O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje
A estrela mente
o mar sofisma.
De fato,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los.


Ferreira Gullar

quinta-feira, 7 de junho de 2007

“Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las” – Ferreira Gullar


Temário do 16° COLE - 10 a 13 de julho - Unicamp - CAmpinas

Releitura do Poema de Ferreira Gullar: "No mundo há muitas armadilhas"

Há muitas armadilhas no Brasil contemporâneo e sem dúvida que é preciso cuidadosa, coletiva e solidariamente, identificá-las para desarmá-las e quebrá-las. Extirpá-las... A realidade brasileira que hoje se vê e que hoje se vive, produzida no transcurso da história, tem muito de embustes, de embromações; tela pintada com as cores do ardil e da armação; entrelaçado no qual se misturam, disfarçadamente, arapucas e alçapões.

As armadilhas econômicas: fundos buracos sulcados em todas as regiões brasileiras. Nos sertões. Nos morros. Nas periferias das cidades. Em beiras de rios. Ao lado das estradas. Debaixo de pontes. Ocupações, favelas. E junto, o exército de famintos e miseráveis, existindo precariamente, sem dignidade, à base de reais contados, estipulados, minguados. Ainda se constata, em pontos do país, o trabalho infantil, o trabalho escravo, a exploração selvagem do trabalho. Reina o desemprego!


As armadilhas da política: logros e manobras tapados à peneira, ofuscando responsáveis e responsabilidades. O mote e os botes do mensalão. As sanguessugas chupando benesses da saúde. Sovinice, enriquecimento ilegal, ilícito. Muitos truques, várias ratoeiras. Currais eleitorais. Voto de cabresto. O político coronel mandão enverrugado na paisagem social. Impera a impunidade!

As armadilhas da globalização: lógicas internacionais que não constituem uma lógica universal humanizante, que são vesgas e caolhas, a ditarem comportamentos e estilos padronizados de vida aos brasileiros. Os mercadores, dominadores do passado e do presente: ingleses, franceses, norte-americanos, japoneses, coreanos, espanhóis, noruegueses, finlandeses, etc A subliminar ação arrasadora da tecnologia e da mídia: o apagamento da memória, a destruição galopante da identidade nacional. Erguem-se as falsas portas!


As armadilhas culturais: a erudição e o beletrismo perfunctórios, incrustados nas mentes e nas mentalidades. O imaginário, potente e prepotente, reproduzido no avanço dos séculos. Hoje o luxo e o lixo. A elite e a ralé, o povão. As cortes e os súditos. Os “socialites” e as putas de esquina. Os brancos contra os negros e os índios, eternos subalternos. O preço inatingível da pintura, da escultura, do paisagismo, da entrada do teatro, do cinema, do livro, do show de música. Fronteiras e divisões preconceituosas, perigosas, falsas. Amplifica-se exponencialmente o sensacionalista e o grotesco!


As armadilhas educacionais: escolas enlaçadas na mediocridade e os sonhos que sempre redundam em pizza. Morrem na praia. A luta dos educadores: água mole em pedra dura, tanto bate e nunca fura. O comércio das particulares: burro carregado de livro é doutor. O estado das escolas públicas brasileiras: casa de ferreiro, espeto de pau sem carne salarial, sem brasa infra-estrutural. O esquecimento calculado da educação pública e universal: por fora bela viola por dentro pão bolorento. Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades. Entristecem-se os professores!


E todas essas armadilhas se concretizam às escondidas, enjauladas em palavras, em símbolos, em discursos. Como pode o leitor desenjaulá-las, desvelá-las, desocultá-las ou, como diz o poeta, “quebrá-las”? Talvez, um ser-leitor historicamente situado lutando com, nos e pelos discursos que circulam nessa sociedade injusta e de privilégios. Talvez, uma experiência de leitura, como placenta geradora de reflexões e ações críticas sobre o mundo, como chave para a destravagem das ratoeiras da informação, das ciladas dos imorais, das velhacarias dos emporcalhados, dos conluios dos conservadores e das armações do poder.

Nas iniciativas e nos movimentos, nos gestos e desejos, o leitor, pela leitura, talvez, possa entremear-se nas armadilhas discursivas perigosas e traiçoeiras, produzir sentidos outros das coisas, dos fatos, dos fenômenos, desarmá-las. Verso e reverso? Contradições talvez melhor mostradas na penúltima estrofe do mesmo poema de Ferreira Gullar:


“O certo é que nesta jaula há os que têm e os que não têm;

há os que têm tanto que sozinhos poderiam alimentar a cidade

e os que não tem nem para o almoço de hoje”.


Ezequiel Theodoro da Silva

Campinas, novembro de 2006


quarta-feira, 6 de junho de 2007

Para Repartir com Todos

Dedicado ao participantes do "Rodas de Leitura" pela coragem de compartilhar conosco o sonho de encontrar o diamante".

(Thiago de Mello)

Com este canto te chamo, porque dependo de você.
Quero encontrar um diamante.
Sei que ele existe e onde está.
Mas não me envergonho de pedir ajuda;
Sei que sozinho/a nunca vou poder achar.
Mas desde já posso garantir:
É para repartir com todos.

Traga a ternura que você esconde no peito;
Eu levo um rosto de infância que meu coração guardou.
Vamos precisar de luz para os caminhos da noite
Que, às vezes, esconde o diamante.

Vamos juntos.
Traga toda luz que você tiver.
Não se esqueça do arco-íris que escondeu no porão.
Eu levo a minha lamparina.

Não vale desanimar.
Não vale buscar os atalhos sedutores que nos pedem para
Chegar mais depressa.

Vamos achar o diamante para repartir com todos.
Mesmo com quem não quis vir ajudar, pobre de sonho.
Com quem preferiu ficar só,
Bordando de ouro sua vida.
Mesmo com quem se fez cego,
Ou se encolheu na vergonha de aparecer procurando.
Com quem foi indiferente, ou zombou de nossas mãos cansadas.
Também com quem desconfia que ele existe mesmo.

E existe!

O diamante se constrói
Quando o procuramos juntos, juntas.
E cresce, límpido cresce,
Na intenção de repartir o que chamamos

AMOR!